terça-feira, julho 26, 2005

O Diário de Vovó


Luciano Pinheiro - Pintor / Desenhista / Gravador / Arquiteto - Nasceu em Recife, em 1946. Ganhador de vários prêmios. Participa da mostra Panorama da Arte Atual Brasileira MAM / SP em 1993.Em 1977, foi um dos fundadores da Oficina Guaianases de Gravura em Olinda. Viveu em Paris. Partipou da mostra Zonas do Silêncio, em 1995. Integra a Brigada Portinari. O artista, é referência importante sobre a História da Arte em Pernambuco. Posted by Picasa


Hoje resolvi colocar um texto mais extenso.Uma experiência que estou fazendo, explorando uma nova linguagem para mim. Em vez de colocar no varal, achei melhor, deixar exposto em cima da bancada de livros.

Descobri o diário de vovó dentro do baú, embrulhado em papel celofane azul, pela aparência estava intacto, ninguém, até então, tivera a curiosidade de olhar aquele caderno amarelado, de capa dura, que vovó Claudette, anotava em letras bem desenhadas, o que lhe acontecia de mais importante nos dias de setembro de 1940.
Vovó tinha o hábito de colocar frases feitas por pessoas desconhecidas e conhecidas no canto direito acima da primeira linha em posição de destaque. Abri, por acaso, em uma página, por ela anotado, como de número, mesmo um pouco ilegível pelas marcas do tempo, percebia tratar-se das páginas 272 ou 273.
Primeiro dia de setembro de nossas vidas, começava a escrever... Antes desta linha, escolhera para abrir o mês, com a seguinte frase, destacando sublinhado em duas linhas vermelhas: “Às vezes, fala o falo; outras, fala o dedo”, entendi e li que foi retirado de um livro de poesias que lhe chegara as mãos, por presente do padre Tinoco da paróquia do bairro vizinho. Este livro, fazia parte do acervo do baú . Abri por curiosidade e na folha de rosto do livro, uma dedicatória toda especial feita pelo padre à vovó Claudette. Notei pelo que escreveu, gozava de intimidades com vovó, lembrando manter sigilo do que fora oferecido como dedicatória, pois, não interessava aos demais paroquianos saber desta relação de amizade profunda que ambos, nutriam um pelo outro. Acredito que tenha sido mantido em segredo, pois, vovó zeladora dos princípios da amizade, assim, se comportou...
Vovó adorava o padre Tinoco, observações neste sentido foram feitas por vovó. Apressado, sem querer, pulei umas páginas e deparei que estava escrito: Padre Tinoco, lindo e gostosão ! Meu tesão! Um verdadeiro achado poético, pensei, naquele instante.
Vovó, dizia-se, sobre ela, tratar-se de uma libertina, este foi o comentário dito por vovó Mariquinhas, mãe de vovô Gumercindo. Zeladora dos princípios morais, religiosos e éticos da família de papai. Qualquer coisa que fazia, era sempre precedido por uma oração. Foi o que eu soube num almoço em família, durante um domingo calorento, em torno de uma galinha cabidela, pirão, arroz e outros pratos que agora não lembro. Apenas sabia que, o irmão de papai adorava comer umas galinhas apanhadas na casa da vizinha, que morava naquela casa de lanterna vermelha, sempre acesa durante a noite, apagada por volta de cinco da manhã.
Vovó se colocava diante do espelho e perguntava para ele: Espelho, Espelho meu... Há alguém mais tesuda do que eu? Claro que não há vovó Claudette! - respondia o espelho. Esta pergunta diante do espelho e sua respectiva resposta, estava anotada em todos os meses do ano, tive o cuidado de reparar este detalhe.
Vovó fazia questão de anotar; todos poderão constatar, se por acaso, tiverem oportunidade de ler este diário. Seu corpo não havia marcas de celulite... Uma pena estar manchado o que escrevera como receita para se manter em forma. Li apenas, o que pude ler, olhando mais de perto, pegando uma lupa, uma das frases do receituário...estas letras, ficaram manchadas, o que sobrou para ser lido era: gosto de abrir as pernas todos os dias, pena que Gumercino, não tenha a mesma vontade...o resto ficou ilegível.
Gumercino naquele dia de sábado, tinha conseguido um trabalho extra, andava precisando de dinheiro para saldar as dívidas do bar do seu Zé, não era muito; mas teria que pagar e estava há duas semanas sem aparecer no bar, de vergonha, estava totalmente sem grana. O que havia comido e bebido, estava anotado em folhas soltas, guardadas embaixo do balcão, por ordem alfabética. Seu Zé, foi direto na letra G de Gumercino achou: Dia 28 e 29 de agosto , ninguém, esqueceria dele, a referência maior era da fogosa dona Claudette, assim minha querida avó era conhecida no bairro. O débito referia-se a cervejas, cachaça, um prato de torresmo e outro de lingüiça . Como era cliente antigo e habitual, seu Zé, tinha por costume e cortesia, oferecer um copinho de batida de limão. Fazia questão de quando os clientes liquidassem os débitos , mostrar e rasgar o papel anotado como cortesia da casa.
No dia anterior, vovó, acordara ansiosa e ligeira, aprontou-se com vestidos da moda, chapéu, como apreciava a tonalidade azul, sempre havia algo desta cor, cobrindo aquele esbelto corpo. Esbelto, sim. Muito sensual.. era o comentário anotado do que dizia um dos amigos de Gumercino a seu respeito. Que ninguém nos oiça, oh! gajo, tua rapariga. é muito giro e dava a seguir, uma tremenda gargalhada, seguidos, de comentários maliciosos, ditos por Juaquim. Pelas medidas anotadas e verificadas no dia-a-dia daquele diário, assim confirmadas. Houve um dia qualquer que vovó, lendo os classificados de um jornal, recortou algo que tinha interessado e solicitou uma encomenda. Um livro. Que estava sendo vendido em promoção: compre dois , leve um inteiramente grátis. Oferta por tempo limitado. O aviso de remessa do pedido, seria feito através dos correios, no reembolso postal. O correio da praça e era a única agencia próxima, prometera entregar em sete dias a encomenda. Tinha então chegado naquela sexta-feira. Não estava anotado o que ela fez com os outros livros que recebera . Deve ter sido oferecido ao padre Tinoco, para ser colocado à venda na quermesse da paróquia? Ou quem sabe oferecido a uma amiga dileta, que tivesse fazendo aniversário e precisasse de orientação sexual urgente.
Livro quase esgotado, “Manual de posições eróticas na cama, no chão e na lama”, de autoria de uma ex-freira de origem italiana, dizem que foi baseado no Kama Sutra. Era, apropriado para o público masculino e feminino. Ambos os sexos. Continha várias dicas. Impróprio para menores era a advertência que trazia na capa, vovó tão cuidadosa ,que ainda manteve esta faixa no livro. Preocupação, que tinha com as crianças para ficarem longe destes assuntos
Havia uma lição, que vovó estava demasiadamente interessada, disposta adquirir conhecimentos técnicos. Prometia conforme escreveu, ser uma aluna aplicada e que não deixaria de fazer sobre nenhuma hipótese qualquer exercício ilustrado que continha naquele manual. Nem que fosse o caso, arrumasse um novo parceiro. Pensava em deixar o púbis depilado. Assim mesmo que estava escrito por minha avó: “deixar o púbis depilado”. Seria uma nova experiência. O efeito de sua aplicação era recomendado para a parte da manhã ou no principio da tarde, durante o banho. O exercício poderia ser repetido durante o dia, quantas vezes pudessem fazer. Havia no prefácio, dizendo que a qualquer hora do dia, poderia ser praticado. Ficando a critério do leitor. Um material de auto-ajuda eficiente, era o subtítulo.
Na página 45, mostrando a posição ilustrada em seus mínimos detalhes, o livro era muito rico em ilustrações.Parece que houve ou foi comentado algumas vezes, ser este um trabalho experimental da freira para criação desta obra. Assim, alguém comentara e suspeitara que a foto da mulher que ilustra o manual, poderia ser da autora. Na foto que foi confundida, a mulher, deixava os glúteos em primeiro plano. Maravilhosa foi uma expressão de Tinoco com aquele manual técnico. Hoje seria identificada como uma “poposuda”. Sempre que surgia o assunto, em vários momentos do dia, inclusive nas reuniões dominicais da paróquia sobre as dificuldades dos casais em abordar tema de interesse comum, principalmente em se tratando de natureza sexual. Havia alguns casais presentes nas reuniões em crise de abstinência, de desencontros, etc... Este manual era altamente indicado. Vovó tratava de divulgar de imediato, dizia sempre que, transformara-se em nova mulher após a leitura e os exercícios recomendados Soube que o livro tinha boa circulação e um consumo muito grande nos conventos. Foi esta a informação que li, através de uma resenha de jornal, esquecido no meio daquelas folhas do diário
A lição promete, vovó leu as resenhas, consultou amigas que tinham lido e que o manual sendo bem executado,poderia até levantar defunto. não sei como? Se ela conseguiu, não fica claro; mas que falava, falava. Se, era para defunto, pressuponho que seja para algo morto. Mas o que estaria morto e que provoca tanto interesse e entusiasmo para vovó solicitar este livro por reembolso postal? Ainda estou para saber no seio da família, do que se tratava.
Vovó anotara que nesta sexta-feira, bem no final da página do diário, que sonhara com o padeiro e com uma bisnaga enorme que ele trazia junto ao seu corpo. Fiquei excitada,dizia, sublinhado em letras vermelhas; apontava no registro daquela sexta-feira. Passei e pensei o dia inteiro naquela enorme bisnaga que o padeiro trazia de modo que as pessoas à distância, pediriam e gostariam de experimentar. Como nunca tinha experimentado pão do tamanho que o padeiro trazia. Fiquei imaginando como poderia segurar aquele volume, pois era um pão diferente do que estava acostumada a pegar para comer. Era o meu sonho, escrevera duas linhas antes de terminar a folha em que escrevia. Pelo volume apresentado, parece ter saído do forno, alguns momentos antes. Poderia ser aquecido a qualquer instante, era um dos avisos da embalagem de embrulhar os pães . Isto era muito bom, registrava vovó em seu diário mais do que intimo.
Sei de tratar-se de confidências, mas hoje, encaro que há uma ingenuidade no que ela deixou escrito, mesmo sendo para a posteridade. Leio estas páginas e guardarei conforme encontrei, todo embrulhado e dentro do baú .
Tinha um capítulo como ela mesmo observou, dizendo deixar para ser lido no final, abordava o capitulo inteiro sobre posições sexuais depois dos cinqüenta anos. Era mais ou menos a idade de vovó quando escreveu este diário. Achei até estranho quando li. Mas enfim, temos que respeitar uma obra e seu autor. Confesso hoje, que fiquei preocupado quando li. em um jornal, que a autoria do livro; era do sexo masculino, mas que o pressuposto autor , tinha esta tendência desde garoto, escrever sob o pseudônimo feminino. Foi matéria de destaque na imprensa, após esta descoberta. Cruz credo! Há cada coisa neste mundo de Deus.
Pão, bisnagas enormes e padeiro possuidor dos melhores pães do bairro, faziam parte por muitas noites de sonho e pesadelo de vovó Claudette. Tinha sonho que ela, achava muito gozado, o de estar chupando um pão por exemplo e acariciando inteirinho, e que o pão depois de molhado, não ficava tão fresquinho quando chegara, permanecia mole e menor. Pensava que era na verdade um aquecimento preliminar que faltava ao pão , coloca-lo no forno, talvez.
Vovó Claudette iria reclamar ao senhor Monteiro, dono da padaria que produzia os maiores pães do bairro; e que bastava dar uma distraída, o pão que ela comprava, amolecia e ficava menor. Gosto - sr Monteiro, de saborear, de sentir na língua um pão mais durinho, rígido na sua forma, quentinho e torradinho; reclamava sempre que isto acontecia ao padeiro. esticando vez por outra, o comentário à vizinha de porta, Frau Eva, uma alemã que pertenceu a Deutsches Rotes Kreuz (Cruz Vermelha Alemã ) – sempre que podiam, trocavam confidências entre si - a qualidade que ela encontrava no pão, uma delas era esta. Ambas davam risadas marotas, a alemã um pouco exagerada nos risos.
Nesta pagina 45 e 273 no diário, vovó gostava de fazer comentários, sobre a leitura e qual a posição experimentada, se surtia efeito o mais rápido possível. Pude observar na página seguinte, bem no canto esquerdo, anotado a seguinte observação: dar de presente a Frau Eva, de aniversário, livro que encomendei. Penso depois de ter lido, um dos livros que encomendou e tinha em duplicata, foi oferecido de presente para Eva e não para o padre Tinoco; este ficou apenas com um exemplar para ser oferecido.
Frau Eva, comentava minha avó, tinha a mania de gemer naqueles momentos de prazer, com o sueco que a visitava todo fim de semana, terminava dizendo em uma mistura de alemão e sueco: Mein Gott!!! Tack! Nej! Ja ! alguns vizinhos escutavam. Gumercino não entendia nada, nada, daqueles sons emitidos pela alemã . Ao contrário de Tinoco, que adorava escutar e terminar assobiando a cantata: Jesus, alegria dos homens, de Johann Sebastian Bach, quando vinha me ver, depois de fazermos experiências, então, servia, chá com biscoitinhos feitos em casa. Gostavam de tomar chá de camomila ou erva cidreira.
Vovó tinha anotado e afirmava que gostava da posição da serpente, a quarta da página quarenta e quatro, era apenas uma das tantas de sua preferência;pela ilustração era fácil de fazer, nada de complicado, só que o Gumercino, naquelas horas, era muito desajeitado, tinha dificuldades de aprender aquelas técnicas, ficava com as penas bambas, a cueca custava a ser retirada, era um sufoco. Diferente do lindo e viril Tinoco, observações feitas a lápis colorido em vermelho, da cor do coração. por vovó. Acrescido ainda, a lápis, de que ela chegava virar os olhinhos quando chegava aquele momento impar de prazer de gozo pleno, ficando bastante suada. Era uma troca de união física e espiritual. Realizava a sua posição preferida...era o dia que passava um óleo perfumado sobre o corpo. Falava isto na pagina 274, em orgasmos múltiplos,se conseguiu, não revelou.
O prazer pela felação e suas diversas maneiras de fazer em seu parceiro, também estava anotado no pé de página, faço e gosto por demais desta posição, chego a bisar para atender tão entusiasmado pedido de Tinoco. Na primeira vez, que estive contato com Tinoco, deixei-o tão excitado, que fiquei ajoelhada por alguns minutos, apaixonada, pensando em nossa felicidade. Acredita, que era um dos seus melhores desempenhos. Tinha uma das posições que ela adorava, mas ao tentar identificar qual o número, estava meio apagado, não sei bem se 69 ou 96. Bom deixa pra lá, ficou confuso apenas posso afirmar depois que li, que era o que mais gostavam.
Gumercino, assim estava escrito, saiu na noite de quarta-feira para jogar carteado com os amigos do trabalho.Quando costuma a fazer isto, chegava tarde em casa. Vovó pediu a Frau Eva para entrar em contato com o padre Tinoco, assim se comunicava vovó , iria se aprontar para esperar tão agradável visita através da compreensiva Frau Eva, que era a sua intermediária .
Claudette, digo vovó, experimentaria neste dia o exercício em parceria com Tinoco, que por um atraso, não pode sequer de tirar a vestimenta, dado o adiantado da hora e teria que voltar por compromissos marcados na véspera com a beata, que segundo, anotações de vovó mantinha-se em estado de pureza até aquela data. Não houve nenhum comentário a respeito da beata nas paginas seguintes no diário escrito por vovó.
Não chegara a terminar as anotações do mês de setembro, poderia ser considerado incompleto. Finalizava, que ao acordar, depois de tomar café, não resistiu ao saber que Tinoco não viria naquele dia, começou a ligar o chuveiro, de imediato, acendeu o gás, fechou as cortinas, entrou no box, deixando a água escorrer pelo corpo, sendo acompanhado de movimentos ligeiros e ritmados dos dedos de suas mãos ensaboadas, lembrando da lição que aprendera sem fazer nenhum esforço de tão natural que era. Mãos a obra... tinha assim escrito, deixado anotado por incompleto à página 280. As páginas 281, 282 e seguintes estavam em branco. Assim me pareceu terminar o mês de setembro daquele ano de 1940.
Vovó como ficou registrado em seu diário, dizendo, ser um dos dias dos mais felizes de sua vida. E ninguém poderia duvidar....

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